Carta Aberta à Dor
Vou-te escrever uma carta, Dor.
Sabes, só as emoções que me trazias já me deixavam curvado, com os ombros baixos, com a face tensa e com os olhos a comprarem um vazio de tudo o que encontro à minha frente.
Alimentei-te durante tanto tempo dentro de mim, que, naquela fase em que andavas insaciável, já não tinha alimento para mim, era tudo para ti. Não conseguia comer, tal era a obrigação de te alimentar. E tu, o que fizeste? Exato, trouxeste o teu maior aliado, o sofrimento. Era um verdadeiro banquete dentro de mim, uma jornada de prazer calórico com intuito de ver quem caia primeiro, Eu, tu, ou o sofrimento. Desculpa estar a escrever tu com letra minúscula, mas, nesta epopeia, alimentei-te durante tanto tempo e tão bem, que se começasse com letra maiúscula escreveria Eu, que tanto me identifiquei contigo.
Tentei perceber porque é que gostavas tanto de mim, se era amor, obsessão, apego ou qualquer outro substantivo que ainda hoje desconheço. Talvez nunca venha a saber, pois deixaste um vazio tão grande, que me perco naquele espaço tão grande que ocupaste.
Eu devia ser mesmo bom e, entende bom como quiseres, mas até a dormir te alimentavas de mim. Todos os dias, mais um bocado que perdia de mim para ti, e tu, sempre a pedir mais e, eu, como o teu escravo mais fiel.
Durante todo este tempo não sabia que eras tu, até que ouvi uma frase que mudou tudo: “A dor que dói e a dor que muda”. Porra! Eras mesmo tu!
Quando soube o teu nome fiquei finalmente a saber que não te tinha dado autorização para entrar, nem tu, nem o teu melhor amigo, esse palerma, o sofrimento.
Lembraste daquele primeiro dia em que não te alimentei? Foi estranho até para mim, era como se faltasse uma parte de mim, um valor, uma identificação, que durante tantos anos, talvez 30, validava os meus comportamentos. Sentia um frio estranho nas costas, um turbilhão de emoções que não conseguia identificar se eram boas ou más, de tantas e tão rápidas que surgiam. Essa era a tua ultima defesa para não te expulsar, tentares comprar todas as emoções para que elas viessem ao teu encontro e validassem a tua existência. Desculpa, já o fizeste tarde demais e sem a força de antes, pois, sabias tão bem quanto eu que te tinha deixado de alimentar.
Alimentavas-te das crenças mais nucleares, fazias-me acreditar que não era possível mais, nem melhor, que não era possível fazer diferente. E para quê? Isso, para não te encarar de frente e continuar a alimentar-te, como uma doutrina de preceitos básicos que compunham o meu circulo de conforto.
Quando decidi sair do circulo de conforto que me fizeste acreditar que era o único possível, conheci a tua irmã. Essa, sim, a dor que muda!
Posso-te dizer que também ela é um pouco idiota. Veio a rir-se e disse-me:
– “Não me digas que te deixaste enganar pela minha irmã? Sabes, somos muito parecidas, mas o nosso objetivo é bem diferente, embora ela saia sempre á frente e chegue primeiro do que eu”.
E, de facto, ela tem razão. Primeiro tem de doer, temos de cair, mas caramba, o sofrimento era escusado.
Foi a partir do momento que deixei de a alimentar que ela foi perdendo força. O alimento dela era a falta de aceitação de quem nós somos verdadeiramente, em todos os papeis da nossa vida, nem melhores nem pior que ninguém, apenas diferentes, sem julgar e sem comparações. Era o desacreditar em alturas chaves que podia fazer diferente e que não estaria destinado a A, B ou C, o destino é que o fazemos por nós, todos os dias. Alimentava-se de visões pessimistas, de foco no problema que me impedia de viver, avaliar e traçar objetivos mensuráveis.
A dor que muda, continuou, de certa forma, a remexer aqui dentro, mas de uma forma muito mais apaziguadora, permitindo-me ver para onde posso ou não posso ir, quem realmente sou e que o caminho é mais importante do que a meta em si. Que o amor vem de nós para nós e, que quando nos amamos verdadeiramente, o copo que damos meio cheio, vem sempre a transbordar, pois é assim que o vemos.
Que doa até que mude…tudo!